Pequenas
viagens!... O sol já devia estar brilhando na Terra, pois no Plano onde me
encontrava, lindos filetes dourados, sem brilho, como que aveludados se
espalhavam por sobre aquele pântano distante, lá embaixo no Vale Negro.
Eu,
sentada com Pai Joaquim das Almas de Enoque, sentia o esplendor de tudo que
víamos. Divisamos ao longe um homem de branco, que caminhava de um lado para
outro, sem sossego.
–
Quem poderia ser? – perguntei.
O
homem se aproximou, vindo ao nosso encontro.
–
Salve Deus! – Eu disse.
– Eu
me chamo Frazão – falou o homem.
–
Frazão? Ué, Pai Joaquim, o senhor disse que ele era Eugênio...
–
Eugênio Frazão. É porque minha vidência não está boa, fia...
Rimos
muito, descontraídos.
– É
viva? – Perguntou Eugênio Frazão.
–
Somos todos vivos – disse Pai Joaquim nos descontraindo – Neiva tem grandes Mediunidades
e está aqui sonhando conosco.
Frazão
se juntou a nós e começou logo a contar sua vida:
–
Sou um pobre homem louco... Sou recém chegado. Tenho apenas nove anos...
Vivia
naquele pântano, sem destino, pedindo a Deus que me deixasse sucumbir naquele
lamaçal. – E foi dizendo sem que ninguém perguntasse: – Fui bem casado, tive
dois filhos: um homem e uma mulher. Ergui uma pequena Vila com amor e harmonia
que se transformou em uma linda cidadezinha. Mal sabia que Deus havia me
proporcionado tudo para que eu ajudasse aquela gente, naquele tempo difícil.
Todos
me respeitavam, por meu amor e dedicação ao povo e àquele lugar. Tudo teria
continuado na maior felicidade se eu não tivesse dado ouvidos a um tal
Secretário, espécie de ordenança, homem muito ligado ao Padre daquela Paróquia.
Ele foi me avisar da chegada de um Curandeiro que começara a fazer trabalhos
nas redondezas. Sem pensar, eu que era homem ponderado, mandei o Secretário ir
até ele e ordenar que cessasse imediatamente aquelas atividades. E não cuidei
mais do assunto, pois estava com viagem marcada para a Capital, onde ia fazer
prestação de contas, devendo me demorar por uns sessenta dias.
Foi
mesmo... Ainda me lembro bem dessa viagem... Sem ter muita consciência, mas
sentindo que o destino, o meu pobre destino, havia me reencontrado, cheguei
àquela cidade grande. Comecei minhas tarefas nos diversos órgãos públicos, e um
dia saindo de uma das salas daquelas repartições, esbarrei numa moça que vinha
pelo corredor e derrubei sua pasta. Abaixei-me rápido murmurando desculpas e
apanhei a pasta. E quando nos olhamos, nos reconhecemos: era Geruza, uma antiga
namorada com quem eu não havia podido casar, porque seus pais não confiavam em mim. Gente importante,
para romper o romance haviam partido para a França, levando a filha obediente
da qual nunca mais eu soubera qualquer notícia. A única coisa que sabia, era
que Geruza nunca havia se casado.
Na
força que age sobre duas pessoas que se amam, nos abraçamos. E quando acordamos
da surpresa estávamos abraçados. Ficamos sem graça sentindo o peso de nossas
responsabilidades, tão importantes nas nossas idades. Não me recordo bem do que
falamos, mas sei que com algum embaraço mais uma vez sentimos a crueldade da
separação. Não combinamos um novo encontro, não nos demos endereços, enfim,
sabíamos que não tínhamos condições para nos reencontrarmos.
Retornei
à minha Vila, mas meu pensamento estava distante. A estação movimentada,
baldeações em charretes para outra estação, o trenzinho de madeira enfumaçado,
soltando faíscas que ameaçavam nossas roupas, nada disso conseguia minha
atenção, voltada totalmente para Geruza. Agia como um autômato e minha mente
não se ligava na viagem e, nem na minha família que ia rever.
Meu
Deus! O que fora fazer naquela repartição? Porque o destino armara aquele
encontro. E o pensamento em Geruza me envolvia, tomava conta de mim.
Lembrava-me daqueles dias felizes, dos passeios, das cachoeiras. Aquela
criaturinha meiga e amorosa que me completava e enchia minha vida de um
colorido alegre e, também lembrei daqueles olhos cheios de lágrimas, o
desespero estampado no lindo rosto, quando me disse que os pais iriam partir e
ela teria que acompanha-los. Não tinha coragem para desobedecer... E partiu um
dia deixando aquela triste carta de adeus. E sobreveio uma revolta em meu
íntimo, por que me martirizar? Ora, se ela não quis e pronto! Cada um seguiu
sua vida... Mas eram apenas palavras para me consolar. Quando dei conta de mim
as lágrimas corriam pelo meu rosto e o trenzinho estava chegando ao meu Vilarejo.
Resolvi que era meu lugar e que tudo o mais teria de ficar para trás.
Oh,
Tia Neiva! Destino cruel! Em nenhum momento senti enfraquecer o amor que
dedicava à minha velha esposa. Comecei a pensar nas diversas famílias,
numerosas pessoas que eram felizes naquele lugar, graças ao meu trabalho para
desenvolve-lo. Muitas culturas, criações de grande futuro, todo aquele gado, as
grandes fazendas, tudo fruto da minha direção. Agora sabia de onde tirara a
força para tudo aquilo: procurava preencher o vazio que meu coração sentia ao
ter que me separar de Geruza. O grande amor que sentia por ela, havia na sua
falta sido distribuído por todo aquele lugar, dedicando-me àquela missão de
corpo e alma.
–
Sim, Coronel – disse eu – tenho certeza disso. O amor tira realmente muita
terra do coração do homem. Digo isso por mim: o grande amor que sinto por meus
filhos – um amor tão grande que ultrapassou as barreiras do som e me faz amar
todo esse Universo. Só o amor edifica! Somente o amor absoluto, como por
exemplo: o amor das Almas Gêmeas que se encontram na Terra, faz uma
transformação tão grande que permite o nascimento no homem do Amor
Incondicional, essa força bendita que ilumina os três reinos de nossa natureza,
aumentando o poder de nosso Sol Interior, esse sol que exige nosso bom
comportamento, que nos faz sentir em cada ser o novo resplandecer dentro de
nós.
–
Ai! – Disse Pai Joaquim – aprendeste muita coisa na Terra. Muita coisa mesmo.
Neiva como estás falando bonito! Aliás, o que é mais bonito na Terra é ouvir o
homem em seu sacerdócio. Sim, mesmo o homem de poucas letras, explanando o
sacerdócio.
– O
senhor quer dizer com esse homem de poucas letras que se trata de um
semi–analfabeto? – Perguntei – pois saiba querido Pai Joaquim que tenho ricos
professores, homens togados, que saem aqui deste esplendor para irem me ensinar
lá em baixo... Sou
mesmo uma protegida, não sou?
– É
fia, mas você não pode mentir. Seus olhos estão empenhados a Jesus. O que te
faz falar bonito é o que acabou de dizer: o grande Amor Incondicional. Aqui é
fácil falar, porém, na Terra é muito difícil. O homem carrega sérios defeitos
através dos milênios e fica muito difícil amá-lo.
–
Não quero saber dessas cargas – tornei a dizer. Eu levo o meu quinhão e
enquanto tenho forças levo também o dele. Quando vejo ele já está sem
defeitos... Mas, vamos continuar com a sua história Coronel.
–
Quando cheguei à estação, fiquei surpreso. Não havia qualquer um dos meus
familiares a me esperar. Apenas estava me aguardando aquele homem em quem eu
confiava demais, o meu ordenança.
É
Tia, dizem que ninguém engana ninguém, mas fui enganado por aquele homem a quem
tanto me dedicara. Logo após as saudações ele começou a me relatar coisas
amargas, dizendo que o tal Curandeiro não me respeitava e continuava fazendo
seus feitiços. Como eu o proibira de fazer suas sessões na casa dele, agora ele
ia de casa em casa realizando trabalhos e levando o povo ao fanatismo.
Era
um mau momento o meu. Com a emoção me dominando, cansado e magoado, aquela
notícia foi a gota d’água que transbordou meu cálice. Tomado pela fúria ordenei
que prendessem o Curandeiro e que lhe fosse aplicada uma surra na praça
pública.
O
perverso ordenança era o próprio mensageiro do mal. Disse que meus filhos não
puderam ir porque meu netinho estava doente, muito mal. Essa notícia acabou de
me derrubar. Meu neto era há muito a devoção de minha vida. Alucinado, partimos
para casa e durante o trajeto o ordenança ficou falando sobre as manobras do
Curandeiro para burlar minhas ordens. E, mal chegamos a minha casa o Ordenança
correu à casa do Curandeiro para prende-lo.
Oh,
meu Deus! Eu mal sabia que aqueles homens eram meus algozes e que Deus me
colocara ali como Missionário, para evoluir aquele povo e suavizar o terrível
encontro, encontro esse em que o obsessor era meu próprio pai. Pelo meu amor,
pela minha compreensão, pela ternura que lidava com cada um, eu estava
encaminhando aquela gente. Não podia saber que Deus havia mandado aquele pobre
homem – o Curandeiro – para me ajudar.
Não...
envenenado, preferi dar ouvidos ao Ordenança, que com sua mente deturpada punha
em jogo toda aquela gente que eu tanto amava. Oh, meu Deus! Como me livrar do
terrível acusado?... Sim, hoje eu digo Tia Neiva, que o Missionário nem por um
instante pode ouvir outra voz, que não seja a do seu próprio coração.
–
Sim – disse eu, Jamais cairei nesta infração. Não aceito comentários de
ninguém: só ouço a voz do meu coração e só confio na minha Clarividência.
Rimos
com amargura, e ele continuou:
–
Chegamos à minha casa, já ouvia os gritos tristes do povo. Certamente estavam
lamentando a prisão do Curandeiro, pensei. Meu filho e minha nora chorando,
vieram ao meu encontro e me imploraram que os deixasse chamar o Curandeiro,
pois ele já havia curado muitos casos daquela triste febre que estava matando
meu netinho.
Sim,
como pudera ser tão vil? Como pude? Depois de tanta experiência, fazer o que
fiz? Tanta realização, mas na verdade eu estava desajustado.
Aproximei-me
de meu netinho, que ardia em
febre. Lá fora a algazarra havia aumentado. Podia ouvir o
povo e ninguém vinha me dizer o que estava acontecendo. O Ordenança havia
sumido. Oh, meu Deus! Por que meu Deus, eu merecia passar toda aquela dor? Ver
morrer em meus braços o meu netinho... Apenas por uma palavra, um gesto eu
colocaria a perder o que me era mais caro.
Mais
uma vez me sentia como que morto por dentro. Aquela algazarra... se alguém
viesse pelo menos dizer que não era nada com o Curandeiro e sim alguém que
chegava e estavam festejando... Qualquer coisa menos o castigo do Curandeiro,
pensava eu.
No
quarto ninguém falava. Apenas se ouvia a respiração ofegante da criança
moribunda e os soluços dos pais e de minha velha esposa. Nesse momento, Tia
Neiva, garanto que meu único pensamento era salvar meu netinho. Minha nora
parecia adivinhar meus pensamentos e levantando-se num repente, com firme
determinação, me disse que ia buscar o velho Curandeiro. Não falei nada. Eu
pensava que era muito corajoso, mas não passava de um grande covarde.
Súbito
uma força incrível, um impulso violento arrancou-me dali, e saí correndo sem
destino. Corria, corria e de repente senti-me leve, leve como se não tivesse
mais o corpo e me transportei, chegando aos lugares onde meu pensamento me
levava. Cheguei até aqui e então soube que morrera na mata.
Essa
é a minha história, Tia. Tudo teria dado certo se não tivesse ouvido as
mentiras do meu Ordenança. Triste e infeliz daquele que ouve os fuxiqueiros, os
malvados que se armam em julgadores...
Aquele Curandeiro era meu pai, que fora instrumento para
testar a minha humildade. E eu que me sentia humilde, que me dizia humilde,
porque todos viviam a meus pés, à primeira prova caí como um louco. Oh, meu
Deus! Não me encontrei com o Curandeiro para lhe pedir perdão pelo capricho do
meu destino, de minha prova. Ele foi ter com Deus e eu fiquei aqui Tia Neiva.
Pai
Joaquim segurou a mão do velho Coronel, e seus olhos brilhavam quando falou:
–
Não, meu filho. Você se enganou! A algazarra que você ouviu era o povo se
distraindo com as graças que uma velha fazia na praça. O seu Ordenança não
chegou até a casa do Curandeiro, com medo daquele povo que estava ali. Sua nora
conseguiu que o Curandeiro fosse curar seu neto, e todos teriam ficado muito
felizes não fosse terem encontrado seu corpo na mata. Você foi um homem muito honesto
e, pense sempre nessa lição, para que não tenha mais que sofrer, para não mais
julgar ou corrigir sem amar.
–
Agora sim... Agora tenho a cabeça para trabalhar, para cumprir uma Missão...
Salve
Deus! – Dissemos juntos.
Vai,
fia – Disse Pai Joaquim olhando para mim, que os filetes do sol já começam a
surgir.
E
logo, eu estava em casa.
Com
carinho,
A
Mãe em Cristo.
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