Certa
vez ouvi uma voz que chamava por meu nome. Ao me voltar deparei-me com um
senhor de mais ou menos 45 anos de idade, com uma aparência de Espírito
Evoluído que me disse:
Tia
Neiva, eu quero lhe contar a minha história para que sirva de exemplo, aos
Espíritos que têm como lema a violência, acreditando que somente a vingança
lava seus corações.
Acercando-se
de mim continuou:
Era
um daqueles muitos domingos que passamos na Terra, eu e minha esposa. Eu era
muito amigo dos meus sogros e convivíamos juntos muito bem. Um de nossos
vizinhos era muito chegado a nós, embora não tivesse uma reputação muito boa
naquela cidade. E naquele domingo fatídico, quando alegremente almoçávamos
todos reunidos, dois homens invadiram violentamente minha casa e seguraram-me
pelos braços como se todo o ódio do mundo os dominasse. E sem saber do que se
tratava, me senti ultrajado e reagi com toda a brutalidade, tentando me
defender daqueles desconhecidos. Cego pela raiva, quando dei conta de mim um
dos agressores tinha fugido e o outro estava caído morto por mim. Também jazia
morto o meu vizinho José, abatido por aquele invasor que fugira.
Meu
sogro mandou que eu corresse para fugir ao flagrante, enquanto ele chamava a
polícia.
Eu
era muito ingênuo para defender-me e decidi ficar esperando pela polícia, na
certeza de que tudo seria esclarecido. Não conhecia nenhum dos agressores e não
entendia aquilo. As únicas testemunhas da minha inocência, de que eu agira para
me defender e proteger a minha família eram meus sogros e minha esposa.
Como
eu tinha o hábito de beber, ninguém teve coragem de testemunhar em meu favor.
Também como eu, ninguém sabia o que levara aqueles homens a invadirem o meu lar
com tanta violência e me atacarem com tanto ódio.
Nas
ruas o comentário era de que eu matara o pai de uma moça que eu havia
desonrado. Por isso aquele ódio todo. Só que na realidade, estavam me imputando
a culpa de um crime que eu não cometera, e sim... o meu vizinho. Um terrível
engano...
Oh,
Tia Neiva! Deves imaginar o que sofri. Preso, sem amparo e a família da vítima
pensando somente em vingança, passando a me perseguir. Um dia, um irmão daquele
homem que morrera por minhas mãos – que eu reconheci como um dos que haviam me
atacado e fora o assassino de José – foi ser carcereiro no Presídio em que eu
estava e passou a fazer comigo os maiores absurdos.
Cansado
de tanta barbaridade, certo dia fui chamado para depor junto àquele Delegado
que me prendera e me decidi por pedir a ele que me livrasse daquele horror que
vinha passando. Para minha surpresa ele se mostrou muito receptivo e me disse
com convicção:
–
Se tu me ajudares, eu te ajudarei. Desonrastes a filha de Acácio e quando ele
te foi cobrar tu o mataste. Porém, ainda não ficou esclarecido quem matou José,
o teu vizinho. Foste tu? Dizei-me... Bem poderias me dizer toda a verdade.
–
Vou contar – comecei eu, mas, vi naquele instante o meu carcereiro que entrava
e me olhava com ódio. Sim, aquele era o assassino de José. Então lembrei-me dos
pais da moça que eu nem conhecia; lembrei-me da minha pequena Nice que eu
deixara com apenas 3 anos de idade... Minha cabeça parecia girar, mergulhada em
pensamentos estranhos.
Tia
Neiva, olhando no rosto daquele guarda, que tanto mal me fazia maltratando-me e
me espancando, fixei meus olhos nos seus olhos, que pareciam fulgir de tanto
ódio e falei firme para o Delegado:
–
Sim Doutor, fui eu quem matou aqueles dois homens. Porém, acredite, não conheço
a moça e tampouco sabia a razão daquele ataque. E continuei relatando tudo o
que se passara.
Enquanto
eu fazia o relato, assumindo toda a culpa pelas duas mortes, pude ver que o
ódio de meu carcereiro se abrandava. E o Delegado acreditou em tudo que falei.
Eu tremia de medo, pois agora aquele homem sabia que eu o havia reconhecido.
Pensei que já que assumira toda a culpa, ele poderia piorar o tratamento que me
dispensava, vingando-se da morte do irmão e da desgraça da sobrinha.
O
Delegado que tinha estado a nos observar perguntou:
–
Tens alguma coisa contra ele?
–
Não senhor Delegado, nem o conheço.
–
Ele é irmão de tua vítima – afirmou o Delegado.
–
Meu Deus! (gritei) Agora entendo tudo melhor...
Sai
dali pensando no que havia feito. Não dissera ao Delegado que fora o guarda o
autor do crime. Não entendia bem porque me acovardara, mas achei que tinha sido
melhor assim.
Certo
dia fui novamente chamado à presença do Delegado. Notei a presença em seu
gabinete de uma jovem loura, que pensei fosse sua filha. Ele me disse que eu já
tinha direito a uma folga e poderia sair, e ficou conversando mais algumas
coisas comigo. Por fim perguntou à mocinha se ela me conhecia. Ela respondeu
sorrindo com naturalidade que nunca me vira. E eu também disse que não a conhecia.
O Delegado ficou pensativo e me mandou sair.
Sair...
para onde? O desastre daquela situação havia sido completo: eu preso; minha
esposa que não acreditara em meus protestos de inocência, fora embora junto com
toda a família para outro Estado, e nem sequer sabia seu endereço. Mesmo que
soubesse, como iria encara-los se não acreditavam em mim?
O
desespero tomou conta de mim e sentei-me, chorando convulsivamente. Depois de
algum tempo consegui me acalmar, mas sentia que a revolta estava tomando conta
de todo o meu ser.
Já
se haviam passado dois longos anos. Quanta coisa tinha acontecido... Neste
período somente meu sogro apareceu, poucas vezes, mas permanecia calado, sem
forças para me falar. A sua visita até me fazia mal, pois eu sabia que ele
escondia de mim seus sentimentos. Ele também não acreditava em mim. Condenava-me
e sentia revolta pelas faltas que acreditava ter eu cometido. E isso tudo
produzia uma grande revolta em
mim. Quando ele ia embora deixava-me mergulhado no desespero.
Oh, meu Deus! Um momento, um simples momento de ira causara a destruição de
duas famílias...
Numa
noite, após um dia que recebera a visita de meu sogro, só consegui dormir
depois de muitas horas lutando contra a revolta que teimava em me dominar.
Dormi profundamente e sonhei... Sonhei que era um grande Senhor de Engenho e
José (o meu vizinho), era um irmão muito querido, que assumia a
responsabilidade por todas as loucuras que eu cometia. Mais do que irmão, era
um amigo que eu tinha. Nicácio, a minha vítima e seu irmão, meu carcereiro –
eram nossos vizinhos, mas nós os maltratamos muito. Eles eram honestos e muito
mais trabalhadores do que nós. Como resultado disso, suas propriedades eram bem
maiores e melhores que as nossas. Mas, eles eram perversos com os escravos que
viviam tristes em razão dos maus tratos que recebiam.
Ainda
sonhando, caminhava pelos campos quando encontrei uma linda moça – aquela jovem
que eu vira na delegacia – e nos falamos. Era filha de Nicácio e sentimos uma
forte atração um pelo outro. Estávamos apaixonados e embora contra a vontade de
Nicácio, acabamos nos casando e tomei todas as propriedades do meu sogro. Para
isso, após algumas desavenças, havia matado o irmão de Nicácio – meu carcereiro
– e com tantos infortúnios e contrariedades Nicácio ficara louco. Assim, assumi
toda aquela fortuna. Para atenuar meus crimes a única coisa que fazia era
tratar bem daquela família. E meu sonho continuou Tia, até a data atual,
recaindo sobre minha pessoa.
Acordei
e senti alívio. Não sabia nada sobre o que continha de real aquele sonho. E
quando vi meu sogro novamente, veio à minha mente aqueles personagens do sonho:
ele era um homem cheio de maldade, forte, e me induzia a muitas maldades. Agora
ali à minha frente, com aquele ar compungido...
Comecei
a pensar no que o sonho me mostrara e passei a entender melhor o que
acontecera. Certamente se tudo aquilo era verdade, se no passado havíamos
cometido tantos crimes, era natural que pela Lei de Causa e Efeito, aquelas
nossas vítimas houvessem voltado e fizessem suas cobranças. Essa idéia foi
fazendo uma modificação em
mim. Deixei de ser aquele homem revoltado, triste, e passei a
me relacionar melhor com os outros. Já sorria, era receptivo a confidências e
fazia amigos. Enfim, um raio de sol iluminou aquele mundo, em que eu estava
perdido na minha dor.
Tia
Neiva, o homem não pode se queixar de Deus. onde quer que ele vá, ali
encontrará honestidade e tudo quanto precisa para as suas afirmações.
Não
senti mais saudades. Em
cada Presidiário eu via um Senhor de Engenho, tal foi minha
afirmação.
Um
dia senti forte dor de cabeça e fui levado para um pequeno ambulatório. A dor
era intensa e me desinteressei de tudo. A medicação que me deram para aplacar a
dor fez com que eu caísse em profundo sono e então comecei a sonhar...
Oh,
meu Deus! Vi alguns homens que me pareceram Sacerdotes, vestindo trajes
brancos, operando minha cabeça. Realmente depois que acordei, a dor tinha
passado e nunca mais voltou.
Certa
vez estava eu no grande pátio do Presídio, quando notei um jovem com mais ou menos
30 anos de idade. Ele havia matado seu próprio pai e diante disso senti como
todo o mundo sente, repulsa pelo rapaz. Mas alguma coisa dentro de mim venceu
aquele julgamento e me acerquei dele perguntando:
–
Como você está?
–
Como poderia estar? – Ele começou a chorar e entre soluços continuou: Você sabe
que eu sou um assassino? Matei meu próprio pai...
Respondi
com firmeza, que eu não acreditava e que seu caso deveria ser mais ou menos
parecido com o meu. Ele não quis saber como fora o meu caso e continuou sua
narração:
–
Ele vivia bêbado e batia muito em minha mãe. Um dia no auge da violência,
estava a ponto de mata-la quando interferi. Ele se voltou contra mim dizendo
que me odiava, e da mesma forma que matara meu pai, ia me matar. Eu me
surpreendi, pois sempre o considerara como pai. Pensei que era fruto de seu
estado de embriaguez e enquanto ele, trôpego, tentava me alcançar, perguntei a
minha mãe se era verdade. Ela confirmou. Havia dito a ele há trinta dias,
pensando que ele a abandonaria... Naquele instante de desespero, passou em
minha mente toda a minha triste infância, toda nossa miséria. Minha mãe, de
cabeça baixa deixara-se cair em um canto. Foi quando com todo o ímpeto de um
ódio profundo aquele homem se lançou sobre mim. Sem pensar, num acesso de
violência, defendi-me e lhe apliquei um golpe que foi fatal.
Abaixando
a cabeça ele deu um soluço desesperador.
–
Apesar de tudo (disse cabisbaixo), eu não tinha coragem de mata-lo... Porém
aquilo aconteceu e sei que ninguém vai acreditar em mim.
Fiquei
pensando que as coisas aconteceram com ele como haviam acontecido comigo. Senti
um desânimo, mas me compadeci daquele companheiro de infortúnio e lhe disse
algumas palavras de consolo. Tornamo-nos amigos pela dor. E assim, como ele
muitos se chegaram a mim, sempre carregados de ódio, de revolta, mas sempre
recebiam minhas palavras para aplacar o desespero que sentiam.
Nossa
vida ali não tinha muitas novidades, a não ser as malvadezas de umas pessoas
com outras. As suas dores, as suas paixões sempre me encontravam disposto a dar
um pouco de conforto àquelas pessoas, graças a Deus!
Certa
noite tive um sonho com uma casa azul, uma casa muito azul, cuja vida de seu
dono era um mistério. Era riquíssimo, e só recebia visitas que aparentavam alto
nível social, dizendo-se estrangeiros de diversas partes do mundo. Um
verdadeiro enigma.
Meu
sonho continuou e me senti penetrando naquela imensa e misteriosa casa, com a
sensação de que era guiado por alguém que me falava:
–
Procure agir depressa, enquanto você dispõe de tempo. Viu como é perigosa uma
cabeça cheia de sonhos? Lembra-se quando este homem o convidou para trabalhar
com ele?
–
Sim (pensei), poderia estar bem melhor.
–
Como ninguém fugirá às surpresas da noite, com as mãos desocupadas, ajude ao
próximo enquanto permanecem ao seu lado. Atento às oportunidades, dentro de
suas possibilidades.
– Eu
ajudar esse homem? Quem sou eu e como?
Ao
acordar, lembrei-me de que não soubera que espécie de trabalho ele iria me dar.
Ainda deitado lembrava com toda clareza daquele sonho. “Procure agir depressa,
enquanto você dispõe de tempo...” Oh, meu Deus. Sonhos, somente sonhos...
Aquela
voz voltou em outro sonho: – E também só damos lições da vida, enquanto o livro
das provas repousa em nossas mãos. Aprender é fácil, é uma bênção. O que não é
fácil é saber emitir o ensinamento como uma bênção. Acerte as contas com seus
vizinhos, enquanto a hora lhe é favorável. Amanhã, em todos os quadros podem
surgir transformações. A mente do homem é imprevisível. Dê suas lições
sensatamente, reconforte os desesperados... Sonhos, tudo sonhos, pensava eu sem
sair da cama.
O
Delegado sempre vinha conversar comigo. Nós nos afinávamos bem e eu tinha muito
respeito por ele. Com carinho, ele me contava muitas coisas, boas e ruins. Um
dia, ele me disse:
– O
homem da casa azul foi detido. Ele era um contrabandista e continuaria com seus
crimes, se não tivesse matado seu cúmplice.
–
Meu Deus! – Gritei, assustando o delegado.
Então
comecei a contar-lhe desde o princípio, sobre os sonhos, sem saber qual seria
sua reação. E qual não foi meu espanto, quando ele me disse todo esperançoso
que eu era um grande Médium, e me convidou para participar de uma Sessão
Espírita.
–
Sim! (pensei) Uma saída...
No
dia combinado, como ele havia determinado fomos ao Centro Espírita. Era um
grande terreiro, e no salão a Mãe de Santo veio ao nosso encontro, dirigindo-se
ao Delegado. Ficaram um pouco distantes de mim conversando baixinho. Por fim,
me chamaram e me conduziram até um homem que estava sentado em um toquinho. Estava
incorporado, pelo que pude ver, e tão logo me sentei à sua frente, ouvi ele me
falar. Sim, foi com muita surpresa que ouvi aquela voz, a mesma voz que falava
em meus sonhos, me dizendo:
–
Nada tens a fazer aqui. Fique naquele canto e espere até que o Delegado vá
embora.
–
Sim! Respondi depressa no meu espanto.
O
Delegado me perguntou se estava tudo bem e respondi que sim. Iria ficar apenas
vendo como funcionavam os trabalhos. E assim fiz. Como era a primeira vez que
estava num lugar daqueles, muito apreciava, achando tudo bonito e complexo o
que via. O Delegado foi falar com aquela Entidade que havia falado comigo e vi
que ficava muito emocionado ao ouvir o que aquele homem incorporado dizia.
Naquele momento não podia ouvir nada. Só muito mais tarde, depois de passados
muitos anos é que ele me revelou que aquela voz lhe dissera que eu era filho
espiritual dele, e que teria como missão me ajudar na dolorosa faixa cármica
que eu estava atravessando, porém, sem que eu soubesse a verdade. Por isso se
explicava a grande afinidade que sentíamos, desde o primeiro instante que nos
encontramos em tão triste momento.
Quando
voltamos, o Delegado demonstrando grande emoção e já confiando em mim, não me
acompanhou até a portaria do Presídio. Para minha surpresa havia sido mudada a
guarda da noite e os que ali estavam não me reconheceram, e acharam que eu
estava mentindo quando lhes disse que havia saído com ordem do Delegado, em
companhia dele. Nada adiantou. Maltrataram-me e me colocaram numa cela
solitária, incomunicável.
Tinha
esperanças de que quando chegasse o pessoal de dia o caso fosse esclarecido.
Mas, então vi que aquele Carcereiro minha vítima do passado, não apagara o ódio
por mim. Ele nada disse sobre minha situação e assim passei vinte e quatro
horas naquela solitária, incomunicável, sem ter quem me ajudasse. O que valeu
foi o Delegado ter ido à minha procura e descobrir toda a trama. Ele ficou
furioso, pois sentiu que aqueles guardas, apesar de me reconhecerem tinham um
inexplicável ódio por mim. Tinham prazer em me aplicar castigos e sofrimentos.
Repreendeu severamente aqueles homens e me mandou para a enfermaria, a fim de
me tratar de alguns ferimentos.
Cheguei
ao ambulatório e me deitei para descansar um pouco, já tendo sido atendido pelo
enfermeiro. Estava cansado e não sentia ódio pelos meus algozes, e sim,
descrença. Uma profunda descrença de tudo, abalando até a confiança que sentia
em mim mesmo. E foi nesse estado de espírito que me desprendi de meu corpo,
para receber mais alguns importantes ensinamentos.
A
partir desse dia, tudo mudou para mim. Passaram a me respeitar mais e olhava
aqueles meus carcereiros – homens, pobres homens que só tinham ódio e maldade
em seus corações – com compaixão.
Certo
dia estava sentado, envolvido por meus pensamentos, contemplando minha situação
– matara um homem e pagava por dois crimes – quando senti uma aproximação.
Pelos arrepios de meu plexo senti que não era de boa natureza. E realmente,
aproximou-se o irmão de minha vítima, meu carcereiro, que me disse baixinho:
– Você
sabe que hoje completam 15 anos do seu bárbaro crime?
Minha
cabeça rodou e tive pela primeira vez a sensação de que era realmente um
assassino. Tremi diante daquela acusação e pedi forças a Deus para que perdesse
o medo e pudesse enfrentar aquele meu cobrador. E fui ouvido, pois falei com
firmeza àquele homem que tantas torturas me fizera sofrer:
–
Como se atreve a me dizer estas coisas, se você sabe tão bem quanto eu, toda a
verdade? – Falei e senti como se o espírito de José estivesse falando por mim –
Como pode ser tão cruel? Tão vingativo? Quando sabe a verdade sobre mim? Sua
sobrinha deve ter contado a você que nunca a vira e você, com suas próprias
mãos vingou-a do homem que a desonrara. E eu paguei pela responsabilidade de
mais um crime, para que você ficasse em liberdade, já que eu não poderia
devolver a vida de seu irmão. Não tenho ódio em meu coração, e só acho que
deveria ser inocentado do crime de ter seduzido aquela pequena jovem. Meu Deus!
Fui difamado sem sequer tê-la conhecido... A minha esposa não acreditou em mim
e sumiu carregando minha filhinha Nice, com apenas três anos de idade. Até hoje
não sei nada delas e você vem me dizer que estou a quinze anos neste
cárcere...? Sim, depois que meu sogro morreu não tive mais qualquer notícia delas...
Há quanto tempo? Nem sei mais. Você me inutilizou, me torturou. Pago pelo seu
crime e tenho que ouvir suas calúnias? Tenho um rim deslocado, que me maltrata
pelas pancadas desferidas por seus punhos covardes. Mas agora basta! Até hoje,
foram os seus dias. De agora em diante, serão os meus dias.
Avancei
sobre ele que, apavorado por ver minha reação, segurou o apito e tentava sacar
a arma, quando o agarrei e quebrei seu braço, derrubando-o com um golpe que o
fez gemer de dor.
Foi
um grande tumulto e outros presos acorreram, vindo a guarda em pé de guerra,
com medo que se alastrasse uma rebelião no Presídio. Subi para um degrau e ali
do alto comecei a falar. E parece que chegara a minha hora, pois Deus mais cedo
ou mais tarde toma o partido da inocência oprimida, e todos pararam para me
ouvir. Eu falei para o meu carcereiro, que gemendo estava ali parado, amparado
por outros sentinelas, e disse como se estivesse manifestado pelo Espírito da
Verdade:
–
Sofri, sofri suas injúrias realmente, nestes quinze anos de tolerância e de
dor. Há quinze anos você me massacra nesta cela e esqueceu de que o reconheci
desde o primeiro momento em que o vi. Porém, não queria que sofresse e para
tentar compensar a morte de seu irmão em minhas mãos, assumi sua culpa. Você
também sabia que eu nem sequer conhecia sua sobrinha. Enquanto eu me defendia
do ataque de seu irmão naquele domingo fatídico, você matou meu vizinho José, o
verdadeiro sedutor de sua sobrinha. E eu estou pagando pelos dois assassinatos
e pela sedução da jovem. Tenho sofrido muito, mas não o denunciei até este
momento. Nunca quis lhe fazer qualquer mal, embora você deva ter consciência do
seu procedimento e do seu irmão naquela triste tarde na minha casa...
Ele
não esboçava qualquer reação enquanto eu falava. De cabeça baixa, ele estava
sob o jugo da verdade. Todos ouviam atentamente as minhas palavras quando fui
interrompido pela chegada do Delegado que foi pedindo calma e me disse:
–
Tenha calma João, que sei tudo a seu respeito.
E
voltando-se para o meu carcereiro, que não conseguia manter-se firme, falou com
aspereza:
–
Quem deveria estar nesta cela era você. E ainda tem a coragem de zombar deste
homem... Sim, somos todos filhos de Deus e não serei eu quem irá condenar sua
conduta. Sei que cobra incessantemente perdido no ódio, esse pobre homem que em
vidas passadas foi seu algoz. Porém, tudo tem o seu preço e o seu fim. A vida
não é simplesmente uma cobrança. Somos filhos de Deus, somos irmãos e a
finalidade da cobrança é a escalada para um mundo superior, é para nos unirmos
em uma única família universal, sem peso na consciência. Quando você tiver a
felicidade de conhecer os santos desígnios de Deus, aprenderá a ter amor ao
próximo como Jesus Cristo nos ensinou no Santo Evangelho. Fique sabendo que na
cobrança sem amor, as dores são repartidas. Todos somos imperfeitos. Como pode
um homem se atrever a cobrar com torturas, seu irmão, por um crime do qual não
foi ele o único culpado? Sempre soube da sua vida, mas não quis interferir para
ver até onde você ia na sua inconsciência. Sempre fui de opinião que você não
merecia estar aqui. Deus, o grande Deus, nos admite nesses Presídios para que o
homem pare e pense no que ele passa aqui. E é o que muitos fazem lá fora aos
inocentes. Pessoas que pisam em seus próprios cadáveres...
Quando
percebi Tia, todos do Presídio estavam reunidos ouvindo as palavras do
Delegado. Comecei a falar:
–
Não quero afligir meus irmãos com detalhes de minhas torturas, e sim, lhes
dizer que tudo tem o seu santo dia. Nem um só filho de Deus está perdido ou
esquecido, e só assim podemos compreender Sua bondade infinita. Sim, cada um de
vocês um dia compreenderá. Chorei muito em minha cela. Chorei, desesperado
pensando estar esquecido até mesmo por Deus. Quantas noites me acordava sob
efeito de terrível pesadelo e ao abrir os olhos me deparava com você – e
apontei para o carcereiro – à beira da minha cama, com atitude de quem ia me
matar. E eu? Eu nunca pedi que não o fizesse. Isso e muitas outras torturas que
não direi agora, pois são por demais tristes para serem cometidas por um ser
humano. São muitos os homens que se utilizam da calúnia para esconder seus
crimes. Fingem e mentem tanto que chegam ao ponto de acreditar no que criaram
suas próprias mentes sujas.
Fui
interrompido pelo apito que nos chamava para a refeição, e aquilo quebrou nossa
concentração. Todos se movimentaram e os guardas foram levando o meu carcereiro
para o ambulatório.
Sentei-me
ali mesmo e novamente só, senti uma sensação de alívio, como se um peso tivesse
sido tirado do fundo de minha alma e chorei. Chorei copiosamente.
O
Delegado mandou me chamar e quando cheguei ele me recebeu com muita alegria, me
abraçando e dizendo:
–
João! Cumpristes dignamente a tua pena e a tua missão. Parabéns. Agora és um
homem livre.
A
notícia me deixou meio tonto, e muitos presidiários e guardas vieram para se
despedir de mim. Em meio a tantos abraços só sentia aquele atordoamento, e
assim, sem saber exatamente os meus sentimentos, saí daquela Penitenciária onde
passara aqueles quinze anos, que me pareciam uma eternidade.
O
Delegado foi comigo até a rua e me abraçou comovido, desejando-me boa sorte.
Quando ele me deixou, fui até um banco que havia próximo ao portão e me sentei,
tentando por minha cabeça em ordem.
–
Para onde irei? (pensava). Como poderei viver, trabalhar, se poucos são os que
confiam num ex-presidiário? Onde posso encontrar minha Nice, minha filhinha
querida? Será que ela sabe da minha existência? Agora com dezoito anos, será
que ainda lembra de mim? Irá acreditar em mim?
Era
uma avalanche de pensamentos que me deixava fora da realidade. Comecei sem
sentir, a falar em voz alta:
–
Oh, meu Deus. Sei que fui assassino pela honra do meu lar, porém, jamais
desrespeitei alguém, principalmente uma mocinha.
Nem
senti quando o Delegado que se chamava Wagner, se sentou ao meu lado. Só ouvi
sua voz amiga que rompeu minha sintonia dizendo:
–
Calma João. Calma e esperança. Deus saberá te recompensar. Com certeza está
reservando um grande bem para ti.
– É
Doutor, mas que será de mim agora? Sem lar, sem família, sem ninguém...
– De
onde tu vieste, filho?
– É
uma longa história doutor, e pode acreditar no que vou lhe contar. Eu nasci e
vivi na roça, numa família unida, cuja vida era o celeiro e a lavoura.
Trabalhávamos muito, mas tudo era feito na maior harmonia, e todos ali nas
redondezas eram amigos. Vivíamos na mais linda harmonia. Sim, haviam muitas
festas, mutirões, e formávamos um belo grupo. Certo dia fomos para uma grande
quermesse, numa festa realizada em homenagem à santa padroeira do lugar. Esses
acontecimentos eram sempre marcados pela alegria e todos compareciam. Fomos
para aproveitar a festa e levei minha noiva Dorinha, um amor de mocinha, filha
de um vizinho nosso. Logo que chegamos já fomos comprando bilhetes da rifa,
cujo prêmio maior era um lindo cavalo, e depois fomos vendo as atrações da
Quermesse. Acercou-se de nós uma cigana que era membro de um grupo que há
alguns dias havia acampado por ali. Pediu minha mão para ler, mas eu não queria
perder tempo com essas coisas que achava tolices. Disse-lhe que não tinha
dinheiro, mas ela pegou minha mão e disse apenas:
–
Vais viajar para muito longe e jamais voltarás...
Dorinha
ficou triste e começou a chorar. Aborrecido, falei com ela que a cigana tinha
dito aquilo só porque eu não deixara ela ler minha sorte. Ficara com raiva e
tratou de criar um problema. Na verdade, só Deus sabe de nossa vida e aquela
cigana não sabia nada sobre o futuro dos outros.
Fomos
interrompidos pelo resultado da rifa. Em meio aos gritos e risadas, foram nos
avisar de que o meu número havia sido sorteado e que eu devia ir buscar o belo
animal. Entre palmas, saí dali montado no lindo cavalo manga larga, levando
Dorinha na garupa. Já estávamos esquecidos dos maus presságios da cigana...
Demos
uma volta e apeei para melhor examinar o cavalo que havia ganho. Com surpresa,
senti-me angustiado quando olhei seus cascos e verifiquei sinais de uma doença
– frieira maldita – que começavam a aparecer. Estávamos acostumados com
animais, pois tínhamos grandes tropas, criações e gado de várias raças, e sabia
muito da vida da maioria deles. E sabia que aquele animal não tinha cura, e meu
cavalo teria que ser sacrificado. Sem saber o que fazer guardei segredo, para
ver como resolveria a situação sem que os outros soubessem.
Nem
mesmo a Dorinha contei, mas ela notou que algo me perturbava. Disse-lhe que
estava aborrecido com a cigana que a fizera chorar, e não contei o motivo de
minha mágoa.
Chegamos
em casa e meu pai e meus irmãos estavam me esperando, fazendo enorme algazarra
pelo meu prêmio. Um irmão disse que era preciso examinar o cavalo, pois poderia
ter alguma doença e iria contaminar os outros. Respondi-lhe que já vira o
animal todo e ele estava muito bem. Tínhamos sempre sido leais uns com os
outros. A mentira, a inveja; nenhum desses sentimentos negativos achava guarida
naqueles puros corações.
Por
isso já alta noite, não conseguia conciliar o sono, com a consciência doendo
por ter mentido. Levantei-me e fui até as cocheiras, para ver novamente meu
cavalo. Certifiquei-me de que estava mesmo condenado, pois seus sintomas haviam
agravado. Então, tomei uma rápida decisão: coloquei-lhe a sela.
E
deixamos aquela região no silêncio da noite. Ninguém nos viu sair. Cansado pelo
movimento da festa, todos dormiam pesadamente e não encontrei uma pessoa sequer
no meu caminho.
Doutor
lembro-me como se fosse hoje, daquela caminhada para o desconhecido. Cavalguei
sem parar até que a fome me fez apear à frente de um restaurante da estrada,
onde comi bastante, pois não sabia onde e quando iria comer novamente. Voltei à
cavalgada e algo estranho aconteceu comigo, pois cai em profundo sono. Quando
acordei, estava próximo a uma cidade sertaneja, inteiramente desconhecida para
mim. Fiquei atônito.
Avistei
um grande circo e fui entrando no acampamento puxando meu cavalo pelas rédeas.
Algumas pessoas saíram das barracas e foram ao meu encontro.
– De
onde vem? – perguntou alguém.
Contei-lhes
de onde, mas não lhes disse que não sabia onde estava. Não sabia se podia
confiar neles.
–
Você quer vender seu cavalo? – Perguntou um homem, aproximando-se e começando a
examinar o animal.
Fiquei
com medo que descobrisse a doença do cavalo e me afastei dali. Mas, com grande
espanto, quando olhamos os cascos do animal, verifiquei que não havia o menor
sinal da doença fatídica. Não podia explicar o que havia acontecido, mas era
apenas mais um dos fatos inexplicáveis que estavam me acontecendo.
–
Não, ele é a única coisa que tenho e pretendo voltar o mais depressa possível
para minha cidade – respondi.
– Se
quiser voltar para sua região moço, vai ter que vender o cavalo (disse o
homem). Você está muito longe de casa e este animal não ia agüentar uma viagem
longa dessas...
–
Longe? (mais um mistério para mim...) O senhor conhece minha região?
–
Sim, de ouvir dizer. Fica a mais de oitocentos quilômetros daqui. Na verdade só
conhecemos até perto do Convento.
–
Convento? – Minha cabeça estava girando. O Convento fica muito longe de minha
casa. Como pudera chegar tão longe, sem ter a menor noção do tempo e do espaço?
– É
moço, se quiser ficar estamos precisando de alguém como você para trabalhar.
Aceita?
Com
a mente envolvida por tão denso mistério, decidi aceitar a oferta e comecei a
trabalhar com aquela gente. Havia muito o que fazer, mas a idéia de voltar para
casa estava fixa em minha cabeça, principalmente agora que meu cavalo estava em
perfeitas condições. O que estariam pensando meus pais? E Dorinha? Afinal, o
que aconteceu comigo? Estava sempre perdido no ciclo vicioso dos meus
pensamentos.
Mas
o tempo foi passando e me acostumei com aquela vida. Conheci uma moça muito
agradável e nos apaixonamos. Casamos e tivemos um período muito feliz. Meus
sogros eram como meus pais, e nos sentimos realizados, quando nasceu minha
querida Nice. O trabalho não me dava muito tempo para sair, mas já havíamos
combinado de ir até minha cidade e nos confraternizarmos com minha família, tão
logo Nice estivesse um pouco mais crescida.
Passei
a sonhar com essa viagem, embora não soubesse por qualquer meio o que se
passara por lá em minha casa, desde que a deixara. Eram imagens do passado e ia
relegando minhas lembranças a um cantinho de minha mente, agora toda voltada
para o meu lar e minha querida família.
Por
fim, decidimos que chegara a hora. E fizemos um almoço especial para o qual
convidamos meu vizinho José. Estávamos festejando, também, cinco anos de minha
chegada ali.
Porém,
o destino foi mais forte que os meus planos. Estávamos almoçando quando a porta
se abriu repentinamente e dois homens enfurecidos invadiram nossa casa e
passaram a nos agredir. Procurei me defender, defender minha família, e a raiva
me deixou cego. Também reagi com fúria e quando dei conta de mim, um dos
atacantes jazia morto e o outro havia fugido. José também havia recebido um
golpe fatal.
Esperei
que minha família me defendesse, mas, vítima de um ciúme profundo, minha esposa
acreditou que tudo havia sido motivado por ter eu seduzido a filha de um dos
atacantes, exatamente aquele a quem eu havia tirado a vida... O resto o senhor
sabe, doutor.
O
Delegado ficou de pé e se voltando para um muro que estava próximo gritou:
–
Venha Nice, venha abraçar o seu pai, pois parece que ele já vai embora outra
vez...
Saindo
de trás do muro, uma linda jovem se precipitou correndo e me abraçou. Eu,
tonto, não sabia exatamente o que estava acontecendo. A jovem chorava e me
abraçando disse:
–
Oh, meu paizinho querido! Não irás mais sozinho. Para onde fores eu irei
junto...
Minha
emoção foi tão grande ao saber que aquela jovem era minha querida Nice, que
senti minhas pernas fraquejarem. Oh, meu bom Deus! Não há como descrever minha
felicidade naquele reencontro.
Sentamos
novamente naquele banco e ela me envolvia o pescoço num abraço. E foi contando
muitas coisas novas para mim.
–
Estou noiva do filho do Delegado. Já marcamos nosso casamento para breve e logo
iremos visitar meus avós, que estão à tua espera, ansiosos para te ver.
Olhei
aquele rostinho lindo, os olhos brilhantes e, quase num murmúrio perguntei:
–
Sua mãe, onde está?
Ela
baixou a cabeça e demorou um pouco a responder:
–
Morreu... Morreu de parto. Esperava um filho. Certamente um filho que não era
teu...
–
Oh, meu Deus. – Gritei, sentindo uma dor em meu peito.
Virei-me
para o Delegado, sentindo meus olhos turvos pelas lágrimas.
–
Que infelicidade, meu Deus. O senhor sabia de tudo durante todo esse tempo e
não me disse nada... Por quê?
–
Sim! Meu bom amigo. Não lhe disse nada, para não aumentar seu sofrimento.
Quando tive certeza da sua inocência, fui procurar sua família e lhes contei
tudo. Naquele dia em que o levei àquele Terreiro, a Entidade de minha confiança
me recomendou que eu nada lhe contasse. Até mesmo me revelou que você é meu
filho espiritual, o que me deu alegria e angústia ao mesmo tempo, pois não
poderia revelar esse fato a ninguém, enquanto você estivesse no Presídio. Seria
melhor para todos. E assim fiz...
Então,
um carro parou perto de nós e dele desceu um jovem. Era o filho do Delegado, o
noivo de minha filha. Simpático, apertou-me a mão abraçando-me e dizendo que
tinha um grande prazer em me conhecer, e que estava muito feliz com minha
libertação.
Fui
para a casa de Wagner e me trataram com muito amor, para que me recuperasse
bem, e estava ansioso para voltar à casa de meus pais. Wagner conseguira o
endereço e escrevera para eles relatando o meu drama. Estavam também ansiosos
para me ver.
Em
poucas semanas, Nice se casou e nos preparamos para a viagem. Foi com grande
alegria que chegamos àquele lugar onde eu passara meu primeiro período da vida.
Meus
pais, já bem idosos, felizes e emocionados, me receberam com muito amor. Apenas
meu pai me repreendeu pelo que eu havia feito: – Veja meu filho, o que acontece
aos grandes Médiuns Sensitivos que fogem à sua missão...
– É,
meu pai... Eu tive que ir em busca do meu carma, de meus cobradores...
Minha
volta foi muito festejada. Meus pais e irmãos resolveram fazer uma reunião para
me homenagear. Os amigos da família, muitos dos quais nem haviam me conhecido
pessoalmente, compareceram e pude reviver aquela mesma alegria e
confraternização que existia quando eu era jovem. E me reencontrei com Dorinha.
Embora magoada pelo que eu lhe fizera, guardava o mesmo amor e parece que sabia
que eu um dia voltaria. O tempo deixara suas marcas, mas aquele olhar meigo,
ainda era o mesmo que me emocionara naquele passado tão distante... Apesar do que
eu havia feito, ela não me repreendeu, não me falou dos pesadelos que tivera.
Apenas me olhou e naquele momento, senti que também eu nunca pudera amar
ninguém mais do que a ela.
Num
curto espaço de tempo, casei-me com Dorinha. Então vivi um período de felicidade,
sentindo um bem estar tão grande que por vezes sentia medo de que tudo se
acabasse. Tivemos três filhos e o mais velho chamou-se Wagner, em homenagem ao
meu querido amigo Delegado, o meu pai espiritual que tanto me ajudara, que se
aposentara e fora viver com o jovem casal, Nice e seu filho, já formado em
advocacia.
Nice
também teve um filho e junto a minha família, com meus filhos e meu neto,
achava-me recompensado de todos os meus sofrimentos. Meu bom Deus me havia dado
em dobro por tudo que eu passara...
E
assim transcorreu aquela nova etapa de minha vida, até que chegou o momento de
partir, o grande dia, o dia do meu desencarne. Havia chegado ao fim de minha
missão, de minha história, era o momento de partir para Deus.
Tive
uma febre muito alta e fui perdendo a noção das coisas. Meu corpo ainda
respirava fracamente e ouvia distante, vozes, gritos e soluços. Aos poucos tudo
foi desaparecendo e segui meu destino.
Não
sei bem o que aconteceu, mas me lembro que despertei em um local desconhecido,
com a sensação de estar só. Não via ninguém e quando falei, somente um eco
muito forte respondeu. Parecia ouvir chamados e sermões, mas me sentia em
completa solidão.
Após
um período que não sei determinar quanto tempo durou naquele local, ouvi uma
voz que dizia:
–
Passageiros que partem para a Terra: Concentrem-se para descer.
Preparei-me
para obedecer, quando uma voz me falou e jamais me esquecerei o que disse:
–
João Armando da Silva. Não precisa se preocupar. Fique onde está. Logo uma
equipe de médicos estará aqui e em breve você será conduzido ao verdadeiro
mundo dos Espíritos. Não voltará a Terra, porque você tem Bônus e não irá ficar
vagueando.
Senti-me
emocionado, mas uma ligeira dor cortou-me o coração – a saudade dos que deixara
na Terra. Lembrei-me das palavras de Jesus: “Deixem os mortos enterrarem os
seus mortos...”.
De
repente, chegou aos meus ouvidos o rumor de uma queda d’água. Sem saber como,
eu estava me aproximando do som e pouco depois, surgiu diante de meus olhos uma
cachoeira, num espetáculo deslumbrante de selvageria e desordem, uma branca
espuma dançando entre os penhascos. Era um cenário maravilhoso.
Havia
um caminho por onde fui andando, acompanhando o leito do rio, e fui penetrando
na floresta, enquanto um vento estremecia as copas das árvores e as folhagens
balançavam, como que descobrindo a brisa da manhã.
Fora
a cachoeira, tudo era silêncio e harmonia ao meu redor, e eu respirava aquela
brisa que corria em todo o meu ser. Sentia-me embevecido por tudo aquilo. Até
hoje, não encontro palavras ou analogia para descrever a felicidade e a
harmonia que sentia ali.
Aqui
e ali aparecia a Terra manchada pela luz do sol e, ao mesmo tempo parecia ir se
distanciando.
A
harmonia resulta do acordo perfeito entre nossa mente e o nosso sol interior. A
minha freqüência assídua às Sessões Espíritas ajudou-me muito, pois o
esclarecimento me orientava por onde eu devia andar, por impulsos vindos do
Perispírito, através dos Plexos correspondentes. Como sabem, somos ligados ao
corpo pelo cordão fluídico, e este só se desliga com a morte. Logo após a
morte, nos sentimos leves como uma pena. Por isso entendi o que se passara
comigo. Tive a certeza de estar ali para sempre. Não tinha dúvidas, tinha feito
o meu desencarne e por isso me sentia tão leve.
Sim,
porque o Plexo Físico ou Centro Nervoso é o Plexo das aspirações das grandezas
da Terra. Ele pesa e nos desarmoniza.
Eu
estava agora, naquela situação magnífica que acontece ao homem, quando ele se
desloca da escravidão do seu corpo material. Sim, a vida é formada pelos
movimentos alternativos de suas forças, e esta constante viração constitui a
grandiosa obra da transformação universal.
Naquele
bailado de luzes e na ternura daquela brisa, pedi a Deus que me despertasse do
torpor que sentia. Sem noção do tempo ou de espaço, ouvi uma voz que despertou
em mim, dizendo:
–
João, estás chegando... Recebestes o aroma das Cachoeiras e das matas
frondosas. Enchestes o teu novo Plexo de Prana do teu Espírito Evoluído.
Receberás de Deus o que fizestes por merecer.
Uma
súbita transformação e me vi em um grande salão, onde as pessoas subiam e
desciam, parecendo todos terem vindo da Terra. Ali, um grupo de senhores estava
à minha espera. Era uma família formada. Juntei-me a eles e entramos numa linda
Amacê, rumando para nosso destino, uma cidade colonizada para a qual não
encontro palavras capazes de descrever tão bela era ela. Para ali só vão
aqueles que não têm mais qualquer reajuste a ser feito na Terra.
Comecei
a recordar daquela grosseria do Presídio, de tudo pelo que havia passado.
Porém, imediatamente tive consciência de que atravessara sem revolta, toda
aquela missão que Deus me havia confiado. Aquele meu cobrador, que não soubera
aproveitar a oportunidade oferecida pelo Divino e Amado Mestre, iria ainda
penar por muito tempo, até que brotasse em seu coração a divina semente do
Amor, que lhe daria libertação. Já havia pago pelos meus crimes e nada mais me
restava a fazer na Terra, a não ser trabalhar na Lei do Auxílio.
Adeus,
meus irmãos. Encontro-me na Mansão dos Nicipe.
Com
carinho,
A
Mãe em Cristo.
Vale
do Amanhecer, 18 de dezembro de 1981.
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